Dentre tantos fenômenos que percorrem a vida do ser humano, um dos que têm raízes mais profundas é o sagrado. Nas mais diversas ocasiões, estamos mergulhados no sagrado. O senso comum se expressa de acordo com os conhecimentos que a sociedade o recebeu, assimilou e assim é repassado para as gerações futuras. Sagrado, o adjetivo, segundo o dicionário Houaiss, nos itens 5 e 6, encontramos: 5) que não se deve infringir; inviolável; 6) que não se pode deixar de cumprir.
Apesar de tantas definições, usualmente são esses itens 5 e 6 dos adjetivos que percorrem a vida da maioria das pessoas. Muitas pessoas acham que a bíblia é sagrada, que o Alcorão é sagrado, então são livros intocáveis; que devem ser lidos e interpretados do jeito que está escrito; deve-se praticar, para ser cristão ou muçulmano, do jeito que está lá. É o que ocorre com os chamados fundamentalistas, só conseguem enxergar o que está escrito, não o porque, quando, como e com qual objetivo foi escrito. Não tem senso crítico. Cada religião tem seu livro sagrado, intocável, “imexível”. Portanto, qual, de todos os livros intocáveis, é o livro que traz a verdade, que se pode considerar o resultado de todos os conhecimentos, da moral e felicidade de todos que o seguem?
O espiritismo vem, como toda ciência filosófica, sem livros sagrados. Os livros que fazem parte da chamada “codificação espírita” não são livros sagrados. Muito pelo contrário, são livros para serem estudados, vislumbrados, praticados, criticados, para serem colocados de acordo com o seu contexto sócio-histórico. O espiritismo não está com a verdade absoluta; o espiritismo vem, a seu modo, trazer um apanhado de descobertas e experiências que culminaram com uma doutrina científico-filosófica de conseqüências puramente ético-morais, mas essencialmente progressista. Não é só teoria, é prática; não é só busca filosófica, são respostas empíricas; não é sermão, é prática do dia-a-dia.
É na prática do dia-a-dia que percebemos o quanto estamos mergulhados diante do sagrado. Numa perspectiva analítica, o sagrado perpassa o nosso inconsciente coletivo, ou seja, foi transmitido psiquicamente de geração a geração, ainda que reprimamos algumas idéias, mesmo assim, temos um terrível medo de contestar, de pensar diferente, de rever essas práticas. Numa perspectiva sócio-histórica, podemos perceber uma construção social coletiva, onde a sociedade cria seus mitos de acordo com as necessidades sociais. Numa perspectiva Marxista, podemos ver uma relação de poder e de produção, onde os donos do poder exerciam (e ainda exercem) a opressão através dos mitos para manter o oprimido de acordo com sua ideologia e assim manter a produção e as riquezas. Por fim, numa perspectiva espírita, podemos ver uma evolução do pensamento humano diante do sagrado. Se ainda hoje temos uma grande variedade de fundamentalistas, percebemos que o pensamento crítico aumenta, sai da academia, penetra nas ruas, chega em casas e lugares onde antes seria difícil pensar. No espiritismo não existem nem livros nem pessoas (na figura de mito) sagradas. Todas as grandes expressões espíritas são admiradas, mas colocadas em seu devido lugar de acordo com seu Zeitgest (espírito da época). As idéias, as leis espíritas são frutos da razão, da pesquisa, dos fatos e das relações existentes entre a matéria e o espírito. Não são revelações messiânicas, de aparições, são frutos que devem ser degustados com o máximo de cuidado e seriedade. É como uma obra de um artista, sempre inacabada. Há sempre o que crescer, pensar, evoluir. Diferentemente do sagrado, que é completo, acabado, intocável.
O que mais nos interessa não é a explicação ou as explicações teóricas para o sagrado, mas, que atitudes devemos ter diante dessa situação.
Mas e o sagrado? Pensemos bem, o que na vida não pode modificar? Qual o fenômeno que nunca poderemos modificar? O que em nossas vidas, não é intocável? A única coisa sagrada é a vida, é o ser. A única coisa que não podemos modificar são as mudanças. As mudanças fazem parte e são da mesma vida, do mesmo ser. O ser passa por transformações. Esse sagrado, que expressamos em livros e práticas litúrgicas, é temporário; haverá outros “sagrados”, mas o ser, esse e somente esse é o sagrado.
O ser em sua completa expressão de virtudes. As virtudes são sagradas, os sentimentos de amor, fraternidade, companheirismo, cumplicidade são sagradas. Tudo que eterniza é sagrado, tudo que oprime, aprisiona é expressão passageira.