Dizia um professor muito sagaz que nas sociedades do Ocidente algumas atividades não podiam ser completamente liberadas nem totalmente reprimidas. Se fossem totalmente permitidas, a sociedade se desorganizaria: muitas famílias se dissolveriam e a rotina de trabalho daria lugar ao caos, desorganizando a economia. Porém, se fossem totalmente reprimidas, parte da sociedade surtaria. Um exemplo seriam as drogas recreativas, como o álcool. Lembremos que a proibição do consumo de álcool nos EUA criou Al Capone. Pouco tempo depois, o consumo de álcool foi liberado, mas há alguns limites. Por exemplo, é proibido consumir álcool e dirigir ou exercer profissão. Hoje, a maconha vem sendo legalizada para consumo em diversos estados dos Estados Unidos. O consumo é recreativo e medicinal, pois está provado que, em muitos casos, a Cannabis é mais eficiente do que opioides no controle de convulsões e de dor crônica. No caso das drogas, como em outros, a questão que as sociedades enfrentam é como encontrar algum equilíbrio que permita que as pessoas funcionem e a ordem seja mantida. Por isso, algumas atividades ficam numa espécie de limbo: não são legalizadas, mas são toleradas.

Esse parece ser o caso da cura espiritual ou mediúnica. Quantos não são os exemplos de pessoas que obtiveram curas em centros espíritas depois que a medicina convencional se mostrou impotente? Quem frequenta o meio espírita normalmente conhece de perto algum caso desse tipo. Realidade? Ação extra-física? Efeito placebo? É difícil obter respostas com parâmetros científicos. Não sabemos se as receitas ou cirurgias espirituais funcionam com eficácia similar à de antibióticos e operações à bisturi, simplesmente porque não há pesquisas suficientes nos meios espiritualistas que possam ser replicadas. Mas há, sim, evidências de que pessoas melhoram!

O parapsicólogo estadunidense, Charles Tart, que possui mais de 40 anos de experiência em pesquisa de assuntos espirituais, não hesita em afirmar que evidências suficientes comprovam a existência de fatores não-materiais nos processos de cura. Mas, mesmo assim, o orçamento, a quantidade e a qualidade das pesquisas são ínfimas perto das que são realizadas por universidades e centros de pesquisa das indústrias farmacêuticas e médicas no mundo inteiro.

Esse contraste é suficiente para supor o porquê de não haverem pesquisas sistemáticas que relacionem espiritualidade e cura. As indústrias farmacêutica e medicinal estão entre os negócios mais rentáveis do planeta. As maiores corporações desse ramo controlam orçamentos gigantescos e geralmente atuam em outras frentes de negócios. Quer dizer, são organizações extremamente poderosas.

Pois bem, o que seriam desses investidores se ficasse cientificamente comprovado que passes, água fluidificada, unguentos, baforadas e cirurgias espirituais efetivamente curam em alguma medida estatisticamente relevante? Por que pagaríamos planos de saúde se pudéssemos recorrer a uma medicina não invasiva e gratuita? E qual a justificativa do altíssimo gasto com a formação de profissionais da saúde? Por que o Estado compraria equipamentos de tomografia de milhões de dólares se um médium pudesse identificar o que se passa dentro das pessoas apenas ‘olhando’? Mesmo se a eficácia não fosse 100% garantida, a divulgação de pesquisas científicas sobre um eventual potencial curador espiritual pela Organização Mundial da Saúde poderia ter impactos negativos nada desprezíveis sobre os rendimentos das empresas e profissionais da área da saúde. De fato, algumas universidades têm introduzido disciplinas e apoiado projetos de pesquisa que relacionam cura e espiritualidade. Além disso, a expansão da medicina não-ocidental, como as de origem chinesa e indiana, têm enfatizado o papel do equilíbrio energético para tratar doenças e promover uma vida saudável. Mas tudo isso é marginal – pelo menos no Brasil – frente à dominância do modelo de saúde pública e privada baseado na medicina positivista, laboratorial.

Contudo, se a ciência não garante que os métodos espirituais são eficazes, porque os Estados permitem que os centros espíritas, por exemplo, pratiquem sessões de cura? Quantas pessoas abandonam os tratamentos convencionais confiando simplesmente na fé espiritual? E se as equipes de cura forem charlatãs? Como não há como construir um consenso público sobre a eficácia da cura espiritual – porque não há pesquisas sistemáticas em quantidade suficiente – ficamos à mercê da boa vontade alheia e do nosso próprio juízo. Acontece que essas duas coisas nem sempre andam de mãos dadas quando, por exemplo, uma família enfrenta um grave e desesperador problema de saúde.

Em outros termos, se a cura espiritual fosse pesquisada cientificamente, com recursos similares aos da medicina tradicional, possivelmente o prejuízo seria enorme para essas corporações farmacêuticas e medicinais. Os profissionais da saúde também seriam afetados. Isso desorganizaria um dos pilares das sociedades ocidentais: a medicina científica e os sistemas de saúde pública e privada. Por outro lado, se o Estado proibisse completamente as sessões de cura, as populações mais pobres sofreriam ainda mais as doenças e sobrecarregariam ainda mais os sistemas públicos. Os ricos, desenganados pela ciência, também perderiam importantes oportunidades de cura. Surgiriam então mercados paralelos, totalmente clandestinos, onde as pessoas buscariam válvulas de escape por não conseguirem se enquadrar nos ditames de uma sociedade completamente anti-cura espiritual. Ficariam, assim, mais vulneráveis à boa vontade alheia e ao próprio juízo, e ainda sem poderem conversar abertamente e buscarem explicitamente maiores informações a respeito dos tratamentos.

No Brasil, como sabemos, não há na prática uma proibição efetiva contra a atividade da cura espiritual. Há, sim, no código penal, os artigos 283 e 284 que proíbem o charlatanismo e o curandeirismo. O primeiro é descrito como o ato de “Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”. O segundo condena aquele que age “I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III - fazendo diagnósticos”. Apesar disso, é possível facilmente encontrar e frequentar instituições que oferecem cura espiritual ou mediúnica e, em muitas delas, abundam os relatos de sucesso, inclusive respaldados por alguma literatura acadêmica.

Encontramo-nos, então, numa sinuca de bico. Como identificar, na prática, o charlatanismo e o curandeirismo falsificado, impedindo que as pessoas sejam enganadas, ainda mais em momentos de profunda fragilidade emocional? Como atestar a eficácia dos agentes de cura espiritual ou mediúnica? Uma solução poderia ser a abertura das instituições de cura espiritual à pesquisa acadêmica, a sistemas de verificação do Estado ou mesmo de instituições não-estatais que ganhassem fé-pública para isso. Numa perspectiva kardecista, esse seria um caminho desejável, pois aproximaria a ciência da espiritualidade, contribuindo para a desmistificação que aliena as pessoas.

Os riscos, no entanto, podem ser altos. Se se prova cientificamente a eficácia da cura espiritual, entra-se em rota de colisão com poderosos interesses corporativos. Se se verifica que há charlatanismo ou curandeirismo falsificado em um caso, mesmo que em outros isso não fique provado, milhões de pessoas poderiam perder suas últimas esperanças – inclusive aquelas inconscientemente decorrentes do pensamento positivo ou do efeito placebo.

Nessas condições, compreende-se que tomar uma posição radical seja extremamente difícil. Contudo, desde uma perspectiva espírita progressista e de fundamentação kardecista, é preciso encarar o esforço de trazer o espiritual à luz da ciência. Isso significa, em alguma medida, medir, mensurar, quantificar e replicar estudos criticamente. Mas, para isso, as instituições de cura precisariam romper com o ambiente de segredo, de penumbra e de exigência de fé cega para que o processo funcione. Algumas já o fazem. Mas quantas teriam coragem de se expor a investigadores céticos? A pergunta não é trivial, especialmente para aquelas instituições que se edificam sobre os poderes de um único médium. Cria-se, em torno desta pessoa, uma aura de infalibilidade e uma demanda por regularidade, quando, na verdade, as pesquisas mediúnicas apontam que os poderes mediúnicos oscilam ao longo da vida. No entanto, seja para evitar desapontamentos ou por outros motivos menos nobres, pode-se chegar à mistificação da atividade mediúnica. Neste ponto encontramos um possível grande prejuízo para aqueles que defendem a cura espiritual e que almejam vê-la desenvolver-se para se tonar uma alternativa de política de saúde pública: fraudes, além de gerarem profundo desalento nos fieis, serão habilmente exploradas pelas corporações e classes da medicina tradicional.

Portanto, somente um sistema de verificação e certificação de curas espirituais, com critérios pertinentes a essa modalidade, poderá retirar esse tipo de atividade do limbo entre a tolerância e a clandestinidade. Seria isso desejável? Para quem?

 

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